Existir é Ser Pensado: A Ontologia do Encontro
- Raphael Sousa
- 30 de mai.
- 3 min de leitura

A existência não se dá no corpo nem se basta na matéria. Tampouco se encerra no pensamento que a concebe como objeto, ou na consciência que a sustenta como ilusão de totalidade. A existência se dá — e só se dá — no encontro. Fora dele, tudo é devaneio que se toma por realidade. Pois o Eu que não conhece o Outro conhece apenas o espelho: nele se reflete, nele se confunde, nele se esvazia.
Dizer que “existo apenas em minha mente”, como pretendia Descartes, ou que o mundo é fruto de minha representação, como preconizava Heidegger, é afirmar um desespero e um devaneio: o do ser que se quis inteiro em si, mas descobriu-se órfão do mundo. Não, não é esse o caminho da lucidez — é o de uma razão que se fechou ao mistério e à alteridade. Existir é, pois, enxergar. Enxergar, neste contexto, não é ver. É conhecer de tal modo que o Outro já não possa mais ser ignorado. É ser tocado. É ser chamado. E, por isso mesmo, transformado.
Existir, então, não é simplesmente “ser” — é ser com. É responder e ser respondido. Pois eu só me torno Eu no instante em que um Tu me responde. E se não há Tu, também não há Eu. Há apenas a sombra de um pronome cansado de si. Sim, percebo agora: o meu ser não se cumpre no isolamento de minha mente. O pensamento que me pensa a mim mesmo é pálido. Preciso ser pensado por alguém que não sou eu — por um Outro que me olhe sem que eu o controle, que me veja para além de minhas máscaras, que me diga: “Tu és”.
Há, pois, uma condição relacional da existência: não posso ser, a não ser na memória do Outro, na carne do outro, no risco de me deixar ver. E nisso reside tanto a salvação quanto o perigo. Porque o outro tem o poder de me formar — ou me desfazer. Ele pode me acolher — ou me excluir. E, ainda assim, prefiro esse risco à segurança estéril do isolamento.
Por isso, o desejo que arde não é apenas erótico no sentido vulgar. É ontológico: desejo ser tocado, ser conhecido, ser habitado. Essa é, portanto, a verdadeira ontologia do encontro. Desejo penetrar a carne alheia para que, assim, minha alma seja atravessada por outra, como o fogo atravessa o incenso e o torna fragrância. E os que julgam esse desejo como vício, como doença ou pecado, não compreenderam que o verdadeiro mal não está no toque, mas na recusa de ver no outro um Tu.
Ah, existir no pensamento de alguém... Que milagre! Que antídoto contra o abismo do tempo! Pois o que é a vida senão um breve lampejo entre dois esquecimentos? E se, por um instante, alguém me leva consigo em lembrança — então não fui em vão. E se ninguém me leva? Se minha existência ecoa apenas no vazio? Então sou apenas ruído perdido na vastidão indiferente do real.
Contudo, tampouco posso reduzir-me a ser um reflexo moldado por olhares alheios. Há um risco simétrico: perder-me no desejo de ser amado e não mais saber quem sou. Entre o isolamento e a dissolução, há um fio tênue — e nesse fio, caminha o Ser. Pois só posso ser verdadeiramente eu, quando, no olhar do outro, ainda assim me reconheço. O Outro, portanto, não é apenas salvação. Ele é também risco. Pois aquele que nos pensa, também nos cria. Pode nos distorcer, nos esquecer, nos reduzir a fábula ou caricatura. Somos moldados por olhares que não controlamos. E, mesmo assim, há aí uma espécie de bênção: ser pensado é, afinal, resistir ao nada. Ainda que o pensamento alheio nos refaça, nos desloca do esquecimento.
E vejam, aqui, o mistério: Hoje, ao pensar em Ti — não como objeto, mas como presença — senti um sopro de eternidade. Não sei se me lembras, se me acolhes ou me esqueces. Mas eu te pensei. E ao fazê-lo, não te captei — te invoquei. Em mim, viveste. E isso, por si, já é sagrado.
Mas e eu? Vivo em ti?
Porque se não vivo em tua memória, talvez jamais tenha sido de fato. Pois o Eu que não é lembrado como Tu por alguém, é apenas ruína de si.

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