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O Absurdo do Luto: Amor, Ausência e a Beleza da Dor

Atualizado: 30 de mai.


Meu Pai - Gilson Sousa
Meu Pai - Gilson Sousa

Poucas experiências humanas se assemelham tão visceralmente ao absurdo quanto a morte de alguém que amamos. Ela irrompe, súbita, sem propósito, sem lógica, como uma fenda no tecido previsível dos nossos dias. Há dois anos, perdi meu pai. E digo “perdi” não como quem extravia um objeto, mas como quem vê, atônito, a realidade ceder diante de um fato irreversível — e ainda assim impensável. No mesmo dia, quando voltei para casa, imerso nos rituais silenciosos e mecânicos do luto, sentei-me no sofá. Por um breve instante, a ideia de que ele estivesse apenas deitado no quarto me pareceu não apenas plausível, mas evidente. Era o seu lugar, aquele sofá. E a mente — essa traidora das evidências — sugeriu: talvez ele só tenha saído. Talvez esteja dormindo.


Chamam isso de "negação". Mas a palavra, fria e clínica, falha em capturar o verdadeiro teatro que se arma em nós. Não negamos — fingimos crer. O hábito, esse outro nome da eternidade, não admite rupturas. A morte, por mais anunciada que seja, nunca é esperada. Quando ela chega, o mundo não muda: é o mesmo céu, o mesmo chão, o mesmo sofá. É só a presença que se dissolve. Mas isso basta para que tudo se desfaça.


O que chamamos de tristeza é, talvez, a forma mais concreta do amor diante do impossível. Porque há algo de profundamente revelador na dor: ela nos devolve, com brutalidade, o significado do que tínhamos. Sentimos falta não apenas de um corpo, mas de tudo aquilo que fazia daquele corpo uma existência: a voz, os gestos, os silêncios, as manias — até mesmo as irritações que hoje fariam sorrir. A ausência é a prova mais clara da presença. A saudade, um eco do amor que ficou preso em nós.


E então, dentro da própria dor, um outro sentimento começa a se insinuar, discreto, quase vergonhoso: a alegria. Sim, alegria — e não esperança, porque esta exige futuro, e o luto é um tempo sem porvir. A alegria que nasce da constatação: houve alguém que amamos tanto a ponto de doer sua ausência. E essa dor é o que nos resta de humano num mundo sem sentido.


Rimos, sim — e choramos ao rir. Porque a memória é uma emboscada. Traz o calor dos momentos e, logo em seguida, a consciência de que são irrecuperáveis. O luto não é um caminho, é um círculo. Um eterno retorno à ausência. Uma dança entre o riso e a lágrima. E, como tudo o que é profundamente humano, está mergulhado no absurdo.

Talvez por isso, não há consolo. E é precisamente nessa recusa do consolo que reside a dignidade de quem sofre. O luto, em última instância, não se explica. Apenas se atravessa — com lucidez, com coragem, e, quando possível, com amor.


Poesia "A Rampa", de Raphael Sousa


Hoje, subi outra vez a

rampa do Nilton Santos.

Havia pressa nos meus pés,

como se o corpo soubesse

que a arquibancada me esperava.

Mas os olhos,

ah, os olhos se perderam num gesto antigo —olhar para trás.

E por um instante

te imaginei ali,

com teus passos lentos,

a almofada segura nas mãos,

a paciência bordada no gesto.

A saudade veio como um vendaval mudo.

Quis chorar.

Chorei.

Não apenas pela ausência do jogo,

mas por tudo que era presença.

Por ti.

Pelo tempo em que caminhavas ao meu lados

em que eu soubesse

que tudo aquilo era sagrado.

Difícil entender o que não se escuta mais.

O silêncio tem peso.

Tem dentes.

A fé me sustenta, sim,

mas não fecha o buraco

que tua partida deixou.

E então,

enquanto o estádio gritava outras paixões,

as minhas lágrimas

traziam a tua história.

Hoje, essa saudade

é prova viva

de que um grande pai

vive ainda,

onde a lembrança toca mais fundo

que qualquer ausência.



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